segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Violetas



Ela virou a esquina, atenta ao barulho dos carros. Seguiu adiante e abriu o portão caindo aos pedaços do escondido jardim da casa abandonada, a apenas 2 quadras do lar da menina. Apesar do estado deplorável em que se encontrava a residência, não era possível dizer o mesmo do jardim: lindo, com flores diversas por todos os cantos, árvores de folhas verdes e brilhantes, um balancinho de madeira pendurado em um galho e acompanhando o ritmo da brisa suave, e caminhos de pedras por todo o local. Era fantástico. Um refúgio para menina, mas não apenas para ela. 

O jardineiro que cuidava do lugar costumava chegar meia hora antes da garota. Ele ia por motivos semelhantes ao dela: refugiar-se. Cuidava das plantas para esfriar a cabeça, e porque acreditava que elas, como seres vivos, mereciam cuidados decentes, e não podiam ser simplesmente abandonadas da mesma maneira que a casa foi.  

A garota, de olhos amendoados e reluzentes, cabelos cacheados volumosos e macios, e a pele tão negra quanto a noite, sentou-se no balanço à espera do jardineiro, que já era um senhor de idade. Ele chegou um pouco atrasado e mais tarde do que ela, a menina percebeu, mas não comentou nada. 

Ele começou a podar os arbustos na entrada do jardim. Quase ninguém ia lá: o local passava despercebido. Ninguém se interessava em entrar e ver o conteúdo, julgando o local pela fachada sombria e malcuidada. Era um alívio para o jardineiro e para a menina: um lugar quase secreto. Terminando de podar os arbustos, o jardineiro triou o boné bege da cabeça e esfregou a palma da mão na testa suada, consequência do trabalho e do sol escaldante sobre a própria cabeça. A garota olhava tudo, atenta, e ainda não haviam trocado uma palavra naquele dia. Ainda. 

Ele se sentou em um banquinho de mármore que havia ao lado do balanço de madeira, onde a menina ainda se encontrava sentada. Perguntou como foi o dia da garota. Ela respondeu, e perguntou como foi o dele. Então, eles começaram a conversar. Foi uma conversa tranquila e revigorante, como costumava ser sempre que se encontravam, às quartas-feiras e sextas da semana.  

O jardineiro era um velho solitário. Era viúvo, pai de 4 filhos. A esposa faleceu há 20 anos e os filhos brigaram na justiça pela herança, como se isso fosse mais importante do que a morte da mãe, ou o luto do pai. A briga durou anos, mas terminou com um acordo entre os 4 filhos. No entanto, quando isso aconteceu, a família já havia se divido. O jardineiro, depois da morte da esposa, ia para o jardim da casa abandona todos os dias. Se sentia melhor no meio da natureza do que no próprio lar (podemos chamar de "lar"?"), devorado pelo silêncio e amargura. Ele não falava com nenhum dos filhos há anos, e o jardim era o único lugar aonde podia ir. 
No entanto, houve um dia, 16 anos após a morte da esposa, que encontrou uma menininha no balanço, ao lado de um cachorro vira-lata. Nesse momento, ajoelhou-se e perguntou se estava perdida. "Não", ela teria respondido. O jardineiro perguntou também a sua idade, e na época ela respondeu, sem hesitar: "seis anos". Agora, a menina se encontrava com 10 anos, felicíssima por finalmente possuir todos os dedos da mão ocupados e já ter uma década de histórias para contar.  

Já a garota é filha de um dono de uma padaria pequena no bairro, e sua mãe trabalha como cabeleireira no próprio salão, que fica no andar de baixo da casa (que, apesar de ter dois andaras, não poderia ser classificada como grande). Não tem irmãos, mas tem um cachorrinho muito esperto, que é a alegria da casa da menina. Os pais, apesar de serem extremamente amorosos e cuidadosos, precisam trabalhar o dia inteiro, e a garota acaba ficando sozinha com o cachorro no andar de cima da casa. Não brinca na rua, porque é perigoso, e não se pode mais: as ruas absurdamente movimentadas não deixam. Tem alguns amiguinhos na escola, mas à tarde é o pior horário. É quando fica só, e tem que aguentar inúmeras horas se arrastarem, levando-a junto. 

No dia em que encontrou o jardineiro, havia pedido para ficar no salão com a mãe, que deixou. No entanto, levou o cachorro consigo, para a desaprovação da mãe. A menina, então, pediu para passear com o animal. A mãe ponderou, mas acabou deixando, avisando que ela só poderia ir até os limites da casa abandonada enorme que ficava a duas quadras dali. Nada depois disso. Ela também não poderia entrar lá, caso contrário estaria encrencada. A menina assentiu. Pegou o cachorro, colocou uma coleira e foi-se, pela calçada. No entanto, o cão é um animal muito maior e mais forte do que ela, e, quando estavam na rua da casa abandona, perto de voltar, ele se pôs a correr, escapando das mãos da menina. Para o maior desespero da garota, ele entrou no jardim da casa abandonada, que ela morria de medo. Porém, não poderia deixar o cachorro fugir, pois, caso contrário, estaria de castigo, e o cachorrinho é a sua grande companhia nas tardes tediosas da semana!  Respirou fundo e entrou. 

Quando se deparou com o jardim enorme, arborizado e bem-cuidado, prendeu a respiração. Estava sem acreditar no que via: como ninguém nunca pôs os pés ali? Por que todos diziam para se manter afastada de um lugar tão belo e divino? E, lá estava o cachorro: sentado em frente a um balanço de madeira, balançando o rabinho com uma feição animada e fofa. A menina passou as mãos pelos arbustos e árvores, colheu uns girassóis para dar para a mãe e se sentou no balanço, afagando o pelo do cachorro, que deitava e mostrava a barriga, pronto para a brincadeira. A menina riu. Nesse momento, um velho jardineiro chega, com a expressão cansada. A menina enrijeceu, com medo daquele desconhecido, que começou a fazer perguntas sobre ela. Porém, quando ele virou e começou a podar os arbustos, ela relaxou e deixou os ombros penderem. Eles conversaram um pouco, sobre si mesmos e a vida, e nem sentiram o tempo passar. 

Ela, no entanto, precisou retornar para sua casa, e disse que voltaria na sexta. Não sabia o porquê de querer voltar a se encontrar com aquele senhor. Ele parecia gentil, mas reservado, e aquele lugar era lindo. Havia gostado do jardim e do jardineiro, então ela acreditava que seria legal voltar ali, sempre com o cachorrinho. Na sexta-feira, disse que passearia com o cachorro, e dizia que dava várias voltas com o cachorrinho na quadra, explicando sua demora aos pais. Aos poucos, o passeio virou um hábito, que já somava 4 anos. 

Quartas e sextas: os melhores dias da semana, para a menina e o jardineiro (e, quem sabe, para o cachorrinho também?). O velho era carinhosamente chamado de vovô pela menina, e ele a chamava de "minha garotinha". Ele a ajudava com suas tarefas da escola, que ela levava escondido, e até brincavam juntos. Um dia, ele levou baralho e passaram a tarde toda jogando, tanto é que o jardineiro acabou se esquecendo de seu jardim naquele momento. Às vezes, liam os jornais juntos. 

Naquele dia, em especial, a garota ia aprender os ofícios da jardinagem. Insistira tanto que o velho acabou cedendo (sem muita dificuldade, diga-se de passagem, já que adorava a menina). O jardineiro se levantou do banco de mármore e a menina fez o mesmo, se levantando do balanço de madeira. 

- Antes de tudo, você precisa aprender cuidar de uma plantinha. Hoje começaremos com uma fácil: um cacto. 

- Um cacto?! - Reclamou a garotinha, revirando os olhos - Qualquer um cuida de um cacto. Eu quero uma planta melhor. 

- As plantinhas são seres vivos, minha garotinha, elas precisam de cuidados tanto quanto a gente. Como pode sugerir uma planta "melhor"? - Ele enfatizou as aspas com os dedos - Você rejeitaria um amigo assim? 

A menina pensou um pouco e aceitou. Levou o pequeno cacto para a casa, e, quando a mãe perguntou onde ela tinha arrumado aquela planta, ela respondeu que uma amiguinha dera na escola. A mãe estranhou, erguendo a sobrancelha de um modo desconfiado, mas não falou nada. A garota continuou a frequentar o jardim, e, a cada dia que se passava, estava melhor no ofício. O jardineiro estava orgulhoso de seu progresso. 

Dois anos se passaram, e a menina já era uma jardineira de primeira. Estava grande, bonita, e era muito inteligente. O jardineiro estava com a aparência mais cansada, isso é fato, mas não se deixava abalar. Também passava a impressão de ter cumprido um dever. 

Agora, ela ajudava o velho a cuidar do jardim, e ele estava mais bonito do que nunca. Para a sua casa, comprara diversas plantas, e cuidava de cada uma com muito carinho e dedicação. Seu cachorro falecera no ano anterior, e isso a abalou muito, mas todos a apoiaram, especialmente o jardineiro, que, a partir daquele dia, sempre entrega um buquê de flores para a menina nas sextas. Ela, então, diz que colheu essas flores no caminho, e, para se desculpar quanto a suas saídas nas quartas e sextas, dizia que havia se acostumado a caminhar com o cachorro, e preferia continuar com o hábito. 

Era sexta-feira. 6 anos de convivência, a idade que a menina tinha quando encontrou o jardineiro pela primeira vez. Ela estava sentada no banquinho de mármore observando o velho trabalhar, pensativa. Ele a conhecia bem mais do que o contrário, havia percebido, mas não comentava. Se levantou e começou arrancar ervas daninhas. As flores do dia eram violetas, para a surpresa da menina, que sempre recebia rosas, girassóis, lírios ou margaridas. 

- O que é isso? - Ela perguntou 

- Violetas para você. Sabe o que significam? 

A menina balançou a cabeça negativamente. 

- Lealdade eterna e paz. - O jardineiro respondeu 

A menina sorriu, com seu ar de início da adolescência e começando a desabrochar (exatamente como um flor). Ela não respondeu nada, apenas abraçou o velho jardineiro. Lágrimas surgiram nos olhos dele e nos da menina. Ele a fez prometer que ela sempre cuidaria do jardim, o que ela estranhou, mas acatou a promessa. Quando já estava anoitecendo, se despediram. 

Para total espanto da menina, a mãe se encontrava a apenas alguns metros de distância do jardim. Ela a seguira, pois estranhava aqueles buquês diversos logo depois da morte do cachorro, pois no caminho que a menina costumava percorrer não havia muitas flores. A mãe reclamou com a menina, que cabisbaixa, ouvia a tudo. Ela então, contou a história da casa, que era de extrema curiosidade da menina. 

- Há 22 anos, uma senhora que morava na casa faleceu. Ela era muito amiga da sua avó, sabia? Foi muito triste para todos especialmente para o marido dela. Os filhos se afastaram, e a única coisa que ele tinha era esse jardim, de onde você rouba as flores. O marido dela faleceu há 6 anos, mas por um motivo bem diferente. Um incêndio destruiu toda a casa, e os filhos não se preocuparam em reconstrui-la. O senhor acabou falecendo intoxicado com a fumaça, coitado. O jardim se mantém o mesmo desde então, misteriosamente. Mas aí eu te sigo e te vejo podando arbustos e entendo tudo. Durante todo esse tempo, você cuidava do jardim, mas eu não compreendo como uma garotinha podia cuidar de um lugar tão grande.  

- Mamãe, me desculpe por mentir durante todos esses anos. Mas... venha ver o jardim. É lindo! - A menina respondeu, enquanto processava a informação. 

A mãe a seguiu, hesitante. No entanto, quando atravessou o horrível portão de ferro, abriu a boca e não pôde emitir nenhum som. Agora compreendia a afeição da menina pelo lugar. 

A garota se afastou um pouco de sua mãe. Ela, então, olhou para o céu escuro e estrelado e suspirou. Por isso o jardineiro a ensinou a cuidar do jardim: para partir em paz. Deixou uma violeta em cima do banco de mármore onde o velho costumava se sentar. Chamou a mãe, e fechou o portão de ferro. 

- Lealdade eterna. - Ela sussurrou, voltando para casa

Nenhum comentário:

Postar um comentário