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Cena do filme "O Castelo Animado", de Hayao Miyazaki |
Recentemente viralizou na internet uma trend (ou seja, tendência) que me deixou um tanto incomodada. A tendência em questão trata-se da criação de "artes" no estilo do Studio Ghibli geradas por Inteligência Artificial. Uma enxurrada de fotos dos mais variados tipo no estilo do Studio inundam a internet: são memes, fotografias de acervos pessoais, paisagens, cenas de filmes/séries, etc, tudo no estilo fofo já conhecido e consolidado. É uma tendência que copia escancaradamente o estilo dos artistas do Studio, particularmente de seu co-fundador Hayao Miyasaki, e traz consigo inúmeras problemáticas.
É claro que não é uma moda que durará muito tempo. As coisas funcionam assim. Talvez em duas semanas nem seja mais lembrada, quiçá menos que isso. Ainda assim, creio que seja relevante comentar sobre o assunto, não por conta da trend em si, mas em decorrência do que ela representa dentro desse contexto de rápido avanço tecnológico que nós vivenciamos.
Há alguns anos a Inteligência Artificial "artística" ascende na internet: são inúmeros desenhos feitos com o recurso, nos mais variados estilos e dos mais variados tipos. A tendência atual, de criar desenhos usando IA, não é recente, e já desponta com menos intensidade há algum tempo nas redes sociais. E o debate em torno do assunto também sempre existiu. Para contextualizar melhor, a Inteligência Artificial não é capaz de criar uma arte própria: ela se alimenta de várias artes pré-existentes, feitas por humanos, e, com base nelas, "cria" uma própria. Ou seja: não é uma arte original, por isso refiro-me a ela sempre entre aspas. É uma "arte" que copia obras e estilos desenvolvidos por seres humanos, entrando em questão aqui os Direitos Autorais desses artistas.
Por que a sociedade não está disposta a pagar artistas reais para fazer tal trabalho, mas está disposta - como muita gente fez - a pagar uma Inteligência Artificial? Admito que muitos desenhos são bonitinhos e realmente fofos, é claro, mas é desgostoso pensar que foram criados como mera cópia barata de outros artistas, sem a dedicação humana que a arte impõe e sem a autorização expressa destes. Há muitos artistas de verdade, pessoas reais, que conseguem desenhar semelhantemente aos traços do Studio Ghibli, sem copiá-los e partir de um estilo próprio, mas a sociedade não está disposta a apoiá-los.
Aliás, se pagassem artistas humanos para simplesmente copiarem o estilo do Studio Ghibli já seria algo errado. Pagarem uma Inteligência Artificial, então, anula o teor equivocado da questão? Obviamente, não! O lucro em cima da arte alheia só piora a questão, e essa é a maior problemática: como as empresas de IA estão lucrando em cima do trabalho de artistas. Acredito que a questão seja pior ainda porque Hayao Miyazaki (que, inclusive, está vivo e lançou filme inédito ano passado, O Menino e a Garça, vencedor do Oscar de Melhor Animação), já explicitou em anos anteriores que nunca usaria IA em seu trabalho e que a considera "um insulto à própria vida".
O problema, para mim, não é a Inteligência Artificial em si, mas o uso que estamos fazendo dela. Ela pode (e deve!) ser nossa aliada, mas aqui estamos nós discutindo violação de direitos autorais e vendo trends do tipo despontando no universo on-line.
O senso crítico parece se ausentar entre os seres humanos, que apenas seguem o efeito manada sem um questionamento real das problemáticas que tendências como esta implicam. Obviamente, nem todos têm consciência disso, das problemáticas envolvidas na tendência, então é crucial informar a razão de ser errado. Entretanto, muitas pessoas têm consciência acerca dos problemas envolvidos, e, ainda assim, escolhem fazer parte da trend. São nesses casos em que o senso crítico parece se ausentar, uma vez que é simplesmente ignorado.
É claro que, como apaixonada pelos filmes do Studio e já tendo assistido a quase todos, uma parte de mim quis, curiosa, tentar fazer tal "arte" com a IA. E entendo quem queira fazer parte disso também, "brincar" com a IA. Mas pensei bem e não fiz. E não farei. Porque seria de uma hipocrisia tamanha ser admirada dos trabalhos do estúdio de animação e contribuir para a trend, uma vez que os filmes do Studio Ghibli são produzidos a partir de um intenso trabalho humano de desenho à mão e com a enorme dedicação que este tipo de trabalho exige, e, como afirmei antes, as imagens geradas pela Inteligência Artificial sequer merecem a alcunha de arte.
Enquanto isso, os desenvolvedores dessas tecnologias lucram rios e rios de dinheiro, apoiando-se no trabalho alheio. E ninguém questiona. Muito pelo contrário! Colaboram para este lucro, para esta desumanização da arte. Muito mais útil não seria, como sugerido antes, pagar um artista de verdade? Muito mais útil não seria, se agora de repente todos descobriram o estilo do Studio Ghibli e se fascinaram por ele, assistir aos filmes?
São obras que refletem acerca de questões humanas, como a nossa relação com o meio-ambiente (desenvolvida em vários longas, mas, em especial, em Princesa Mononoke), com as guerras (também desenvolvida em vários longas, mas destaco um de meus favoritos, Túmulo dos Vagalumes), com a nossa própria história (como em Da Colina Kokuriko), com as expectativas sociais (Como o belíssimo e favorito pessoal O Conto da Princesa Kaguya), com nós mesmos (como Sussurros do Coração), e tantas outras temáticas, abordadas em tantos filmes!
Mas isso não está por detrás da tendência. É apenas seguir os outros, seguir os outros e fazer tudo o que fazem, seguir os outros, fazer tudo o que fazem e não ficar de fora. Porque ficar de fora do que está em alta na internet é o inconcebível. Há tantas tendências legais que às vezes despontam, mas há outras são realmente lamentáveis... e há quem diga que a reclamação é chatice, besteira... Mas está bem longe de ser. E o que mais lamento, dentre as tantas coisas que aqui lamentei, é a dessensibilização frente à desumanização da arte.
Não podemos normalizar "arte de IA". Porque a trend, é claro, irá passar. Mas a Inteligência Artificial permanecerá aqui, e temos que aprender a lidar com ela, temos que compreender as questões atreladas à ela. Nem todos têm acesso a esse tipo de informação, e por isso não julgo quem segue a tendência por desconhecimento, mas é preciso que as pessoas que detêm as informações parem de contribuir para esse tipo de coisa e passem a questionar, a informar. É preciso que a Inteligência Artificial seja regulamentada. É preciso muita coisa ainda.
Questionar é um bom começo.
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